sábado, 6 de dezembro de 2008

Por uma crítica cultural dialética

Por uma crítica cultural dialética
Iná Camargo Costa

Este texto é um resumo comentado da introdução ao ensaio “Crítica cultural e sociedade”, escrito por T. Adorno no início dos anos 60. Sua inspiração foi um ensaio dos anos 30, de Walter Benjamin, “O autor como produtor” que, por sua vez, é uma reflexão sobre a experiência de Brecht com as peças didáticas. Dada a sua genealogia, podemos assumi-lo como uma espécie de plataforma da crítica dialética.

O crime de lesa humanidade do capitalismo não é o de ter criado uma sociedade materialista onde se desejam bens de consumo, mas tê-la organizado de modo a impedir que a ampla maioria obtenha os bens de consumo que produz. Nós somos pela saciedade e contra a fome em todos os âmbitos, inclusive o da cultura.

Uma sociedade com plena consciência de si mesma não precisaria ter ideologia, necessária em sociedades como a nossa que não pode ter essa consciência, na medida em que ela contradiz seu próprio conceito, o de humanidade. No atual estágio, de acelerado descrédito do neoliberalismo (a última versão da ideologia), que entretanto não sairá de cena de bom grado, a função da cultura e da crítica prestigiadas pelo mercado e seu porta-voz, a imprensa, é empenhar toda a energia no cultivo das aparências e na ofuscação da consciência.

Por outro lado, por mais que se empenhem os interessados na preservação do estado de coisas, eles não têm como impedir por muito tempo a manifestação da cultura, da arte e da crítica dialéticas, que já estão por todo o lado e estão empenhadas, com igual ou maior energia, em forçar a sociedade a confrontar seu próprio conceito. Por isso combatem, às vezes com legítima fúria, obras e opiniões críticas que continuam afirmando falsidades como harmonia, liberdade de espírito, vida, indivíduo e seu cortejo de ilusões conexas. A crítica dialética tem o compromisso de levar a não-verdade à consciência de si mesma onde quer que ela se manifeste.

A profissão de crítico desde a origem tem um elemento de usurpação, fundado na divisão do trabalho. Este profissional, na essência, não é diferente do que fornece dicas ao mercado. Apenas atua no mercado dos produtos espirituais: como perito na especulação com as artes plásticas ou como juiz no mercado do entretenimento. A ilusão e a auto-ilusão de competência são intrínsecas ao exercício do metiê. A petulância com que é exercido na imprensa decorre da amena consciência de que o êxito do crítico, assim como o das obras, é um diploma conferido pelo mercado. Mas convenções bem sucedidas são por sua própria natureza ultrapassadas e então soa a hora em que o crítico não entende mais o que julga. É quando ele prazerosamente se deixa rebaixar aos papéis de propagandista do que permanece aferrado às convenções e de censor de tudo o que foge a elas, ainda mais feroz se a obra expuser alguma não-verdade. Consuma-se então a antiga falta de caráter de um ofício que participa do amplo trabalho de tecer o véu das aparências.

A crítica dialética empenha-se em confrontar metodicamente todas as manifestações da propaganda e da censura, em expressa aliança com a arte também dialética.

Iná Camargo Costa é professora de Teoria Literária na USP
e autora de A Hora do Teatro Épico no Brasil


Fonte: O Sarrafo, n. 1, 2003.

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